QUINTANA

Mario Quintana – Poemas

Mario Quintana – Poemas Originais Selecionados
Hoje é Outro Dia
Quando abro cada manhã a janela do meu quarto
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova…
Mario Quintana )
(Poema publicado originalmente no livro A Cor do Invisível, retirado de Poesia Completa – Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 855)
Poesia
Impossível qualquer explicação: ou a gente aceita à primeira vista, ou não aceitará nunca: a poesia é o mistério evidente. Ela é óbvia, mas não é chata como um axioma. E, embora evidente, traz sempre um imprevisível, uma surpresa, um descobrimento.
Mario Quintana )
(Poema do livro “Porta Giratória”, retirado por mim mesmo, do livro Poesia Completa – Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 812)
*
Seiscentos e Sessenta e Seis
A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos…
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre, sempre em frente…
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.
Mario Quintana )
(Poema publicado originalmente no livro Esconderijos do Tempo, retirado de Poesia Completa – Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 479)
mario-quintana (foto de Dulce Helfer)
(foto de Dulce Helfer)
*
Projeto de Prefácio
Sábias agudezas… refinamentos…
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre…
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.
*
Fere de leve a frase… E esquece… Nada
Convém que se repita…
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.
*
Eu escrevi um poema triste
Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza…
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel…
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves…
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!
*
Sinônimos
Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor.
*
Poema
Mas por que datar um poema? Os poetas que põem datas nos seus poemas me lembram essas galinhas que carimbam os ovos…
*
O Trágico Dilema
Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.
*
Bilhete
Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda…
Mario Quintana )
(Poema publicado originalmente no livro Esconderijos do Tempo, retirado de Poesia Completa – Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 474)
*
Os Poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti…
Mario Quintana )
(Poema publicado originalmente no livro Esconderijos do Tempo, retirado de Poesia Completa – Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 469)
mario-quintana (foto de Dulce Helfer)
(foto de Dulce Helfer)
*
O amor é quando a gente mora um no outro.
*
Um bom poema é aquele que nos dá a impressão
de que está lendo a gente … e não a gente a ele!
*
Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.
Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!
*
Pequeno Esclarecimento
Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio – um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio… Este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês.
*
I
Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!… E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!
Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons… acerta… desacerta…
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas…
Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço…
Pra que pensar? Também sou da paisagem…
Vago, solúvel no ar, fico sonhando…
E me transmuto… iriso-me… estremeço…
Nos leves dedos que me vão pintando!
*
Do Estilo
O estilo é uma dificuldade de expressão.
*
Da Observação
Não te irrites, por mais que te fizerem…
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio…
*
Dos Mundos
Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo…
Decerto não gostou lá muito do que via…
E foi logo inventando o outro mundo.
*
Da Discrição
Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também…
*
A Verdadeira Arte de Amar
A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali…
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!
mario-quintana
*
O Mapa
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo…
(É nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso…
*
Os Degraus
Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos – onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo…
*
Destino Atroz
Um poeta sofre três vezes: primeiro quando ele os sente, depois quando ele os escreve e, por último, quando declamam os seus versos.
*
Poeminha Sentimental
O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas…
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.
*
Sempre que Chove
Sempre que chove
Tudo faz tanto tempo…
E qualquer poema que acaso eu escreva
Vem sempre datado de 1779!
*
Inscrição para um portão de cemitério
Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce – uma estrela,
Quando se morre – uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
“Ponham-me a cruz no princípio…
E a luz da estrela no fim!”
*
O Pior
O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso.
*
Exame de Consciência
Se eu amo o meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?
*
A Grande Surpresa
Mas que susto não irão levar essas velhas carolas se Deus existe mesmo…
*
Evolução
O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser nosso futuro.
Mario-Quintana (foto de Dulce Helfer)
(foto de Dulce Helfer)
*
Música
O que mais me comove em música
São estas notas soltas
- pobres notas únicas -
Que do teclado arranca o afinador de pianos.
*
Urbanística
Como seriam belas as estátuas equestres se constassem apenas dos cavalos!
*
Canção do dia de sempre
Tão bom viver dia a dia…
A vida assim, jamais cansa…
Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu…
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência… esperança…
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas…
*
Presença
É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos…
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo…
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida…
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato…
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.
*
Da Inquieta Esperança
Bem sabes Tu, Senhor, que o bem melhor é aquele
Que não passa, talvez, de um desejo ilusório.
Nunca me dê o Céu… quero é sonhar com ele
Na inquietação feliz do Purgatório.
*
Dos Nossos Males
A nós bastem nossos próprios ais,
Que a ninguém sua cruz é pequenina.
Por pior que seja a situação da China,
Os nossos calos doem muito mais…
*
Trova
Coração que bate-bate…
Antes deixes de bater!
Só num relógio é que as horas
Vão passando sem sofrer.
*
Dos Milagres
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo…
Nem mudar água pura em vinho tinto…
Milagre é acreditarem nisso tudo!
*
Das Escolas
Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua.
*
Esperança
Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança…
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA…
*
Cuidado
A poesia não se entrega a quem a define.
*
Se eu fosse um padre
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições…
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma
a um belo poema – ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre leva a Deus!
*
Cartaz para uma feira do livro
Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem.
*
Biografia
Era um grande nome — ora que dúvida! Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua… E continuaram a pisar em cima dele.
*
Canção de Barco e de Olvido
(Para Augusto Meyer)
Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.
Ai esquinas esquecidas…
Ai lampiões de fins de linha…
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?
Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares…
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares…
No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.
*
Arte Poética
Esquece todos os poemas que fizeste. Que cada poema seja o número um.
*
XII
(Para Érico Veríssimo)
O dia abriu seu pára-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.
Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua – a Lua! – em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado…
Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo… Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!
E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranqüila de um açude…
*
A Arte de Ler
O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.
*
O Auto-Retrato
No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore…
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança…
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão…
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança…
Corrigido por um louco!
*
A Carta
Quando completei quinze anos, meu compenetrado padrinho me escreveu uma carta muito, muito séria: tinha até ponto-e-vírgula! Nunca fiquei tão impressionado na minha vida.
*
O Morto
Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco…
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!
*
A Coisa
A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa… e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.
*
A Canção da Vida
A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio…
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí…
como um salso chorando
na beira do rio…
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)
*
As Indagações
A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas.
*
Os Arroios
Os arroios são rios guris…
Vão pulando e cantando dentre as pedras.
Fazem borbulhas d’água no caminho: bonito!
Dão vau aos burricos,
às belas morenas,
curiosos das pernas das belas morenas.
E às vezes vão tão devagar
que conhecem o cheiro e a cor das flores
que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam
e onde parece quererem sestear.
Às vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção
como a nossa se recebêssemos o miraculoso encontrão
de um Anjo…
Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.
Os rios tresandam óleo e alcatrão
e refletem, em vez de estrelas,
os letreiros das firmas que transportam utilidades.
Que pena me dão os arroios,
os inocentes arroios…
*
Ars Longa
Um poema só termina por acidente de publicação ou de morte do autor.
*
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim…
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir…
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas… e que estão escritas
do lado de fora do papel… Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da poesia…
como
uma pobre lanterna que incendiou!
*
A Voz
Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras.
*
Clareiras – Mario Quintana
Se um autor faz você voltar atrás na leitura, seja de um período ou de uma simples frase, não o julgue profundo demais, não fique complexado: o inferior é ele.
A atual crise de expressão, que tanto vem alarmando a velha-guarda que morre mas não se entrega, não deve ser propriamente de expressão, mas de pensamento. Como é que pode escrever certo quem não sabe ao certo o que procura dizer?
Em meio à intrincada selva selvaggia de nossa literatura encontram-se às vezes, no entanto, repousantes clareiras. E clareira pertence à mesma família etimológica de clareza… Que o leitor me desculpe umas considerações tão óbvias. É que eu desejava agradecer, o quanto antes, o alerta repouso que me proporcionaram três livros que li na última semana: Rio 1900 de Brito Broca, Fronteira, de Moysés Vellinho e Alguns Estudos, de Carlos Dante de Moraes.
Porque, ao ler alguém que consegue expressar-se com toda a limpidez, nem sentimos que estamos lendo um livro: é como se o estivéssemos pensando.
E, como também estive a folhear o velho Pascall, na edição Globo, encontrei providencialmente em meu apoio estas palavras, à pág. 23 dos Pensamentos:
“Quando deparamos com o estilo natural, ficamos pasmados e encantados, como se esperássemos ver um autor e encontrássemos um homem”.
clareiras
*
Espelho
Por acaso, surpreendo-me no espelho:
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (…)
Parece meu velho pai – que já morreu! (…)
Nosso olhar duro interroga:
“O que fizeste de mim?” Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga… Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste…
*
O Batalhão das Letras
Aqui vão todas as letras,
Desde o A até o Z,
Pra você fazer com elas
O que esperam de você…
Aí vem o Batalhão das Letras
E, na frente, a comandá-lo,
O A, de pernas abertas,
Montado no seu cavalo.
Com um B se escreve BALÃO,
Com um B se escreve BEBÊ,
Com um B os menininhos
Jogam BOLA e BILBOQUÊ.
Com C se escreve CACHORRO,
Confidente das CRIANÇAS
E que sabe seus amores,
Suas queixas e esperanças…
Com um D se escreve DEDO,
Que poderá ser mau ou sábio,
Desde o dedo acusador
Ao D do dedo no lábio…
O E da nossa ESPERANÇA
Que é também o nosso ESCUDO
É o mesmo E das ESCOLAS
Onde se aprende de tudo.
Com F se escreve FUGA,
FRADES, FLORES e FORMIGAS
E as crianças malcriadas
Com F é que fazem FIGAS.
O G é letra importante,
Como assim logo se vê:
Com um G se escreve GLOBO
E o globo GIRA com G.
Com H se escreve HOJE
Mas “ontem” não tem H…
Pois o que importa na vida
É o dia que virá!
O I é a letra do ÍNDIO,
Que alguns julgam ILETRADO…
Mas o índio é mais sabido
Que muito doutor formado!
Com J se escreve JULIETA,
Com J se escreve JOSÉ:
Um joga na borboleta,
O outro no jacaré.
O K parece uma letra
Que sozinha vai andando,
Lembra estradas, andarilhos
E passarinhos em bando…
O L lembra o doce LAR,
Lembra um casal à LAREIRA!
O L lembra LAZER
Da doce vida solteira…
Com M se escreve MÃO.
E agora vê que engraçado:
Na palma da tua mão
Tens um M desenhado!
N é a letra dos teimosos,
Da gente sem coração:
Com N se escreve – NUNCA!
Com N se escreve – NÃO!
Outras letras dizem tudo.
Mas o O nos desconcerta.
Parece meio abobalhado:
Sempre está de boca aberta…
Quem diz que ama a POESIA
E não a sabe fazer
É apenas um POETA inédito
Que se esqueceu de escrever…
Esse Q das QUEIJADINHAS,
Dos bons QUITUTES de QUIABO
Era um O tão mentiroso
Que um dia criou rabo!
Os RATOS morrem de RISO
Ao roer o queijo prato.
Mas para que tanto riso?
Quem ri por último é o gato.
Acheguem-se com cuidado,
De olho aceso, minha gente:
O S tem forma de cobra,
Com ele se escreve SERPENTE.
É o T das TRANÇAS compridas,
Boas da gente puxar;
Jeito bom de namorar
As menininhas queridas…
O U é a letra do luto!
O U do URUBU pousado
Nas negras noites sem lua
Num palanque do banhado…
Este V é o V de VIAGEM
E do VENTO vagabundo
Que sem pagar a passagem
Corre todo o vasto mundo.
Era uma vez um M poeta
Que um dia, em busca de uma rima,
Caiu de pernas pra cima
E virou um belo dábliu!
Coisa assim nunca se viu,
Mas é a história verdadeira
De como o dábliu surgiu…
Com um X se escreve XÍCARA,
Com X se escreve XIXI.
Não faças xixi na xícara…
O que irão dizer de ti?!
Ypsilon – letra dos diabos,
Que engasga o mais sabichão!
Por isso o povo e as crianças
A chamam de “pissilão”…
O Z é a letra de ZEBRA,
E letras das mais infames.
Com um Z os menininhos
Levam ZERO nos exames.
E todas as vinte e seis letras
Que aprendeste num segundo
São vinte e seis estrelinhas
Brilhando no céu do mundo!
Mario Quintana )
(Poema publicado originalmente no livro Poemas para Infância, retirado de Poesia Completa – Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 919 por mim mesmo em 14/10/2012)
*
Poema da Gare de Astapovo
O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua…
Sentou-se …e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta…)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu…
Ele fugiu de casa…
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade…
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!
*
713.789
O bom das segundas-feiras, do primeiro de cada mês e do Primeiro do Ano é que nos dão a ilusão que a vida se renova… Que seria de nós se a folhinha marcando hoje o dia 713.789 da Era Cristã?
Mario Quintana )
(Poema publicado originalmente no livro Da preguiça como método de trabalho, retirado de Poesia Completa – Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 648)
*
A arte de viver
A arte de viver
É simplesmente a arte de conviver…
Simplesmente, disse eu?
Mas como é difícil!
Vive Mario Quintana:
Conheça também:
Mario Quintana
Mario Quintana
O poeta Mario Quintana
(Seleção de Fabio Rocha)

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